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sábado, 26 de novembro de 2011

Se eu chorei à noite?

Foi quando eu chorei à noite que as luzes estavam apagadas, o quarto estava quieto, a janela estava aberta – e o frio me castigava – as luzes do poste eram brilhos de solidão.

Foi quando eu chorei à noite que percebi o barulho do passos desconhecidos ao longe cortarem a sintonia e sobrepujarem o abafo que o meu travesseiro produzia.

Foi quando eu chorei à noite que percebi que embora a lua brilhasse, ela não me iluminava; que embora ela sorrisse, não me encantava; e mesmo tão diferente a mim, éramos tão iguais: eu estava sozinha, ela estava sozinha, e nós não nos fazíamos companheiras, pois eu era egoísta o suficiente para admitir sofrer e não precisar, nem que minimamente e em silêncio, de alguém. Talvez, mesmo que a lua me acompanhasse, eu ainda estivesse com um vazio divagando em mim.

Foi quando eu chorei à noite que eu vi o que eu não tinha visto: que o brilho mais lindo dos seus lábios era tocável apenas na memória, que o seu cheiro era tão bom que era irreproduzível: o aroma do perfume que estava ali parado na estante era divino, não pelo talento de quem o produziu, mas pelo seu cheiro que dava um toque tão rústico e forte em mim. Foi quando eu chorei que tentei tocar o céu da solidão, e continuei a chorar para com minhas lágrimas inundar o meu mundo vazio.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Motricidade


A vida de Herbert Vianna e a deste texto se encontram a partir do dia 4 de Fevereiro de 2001, após o acontecimento na baía de Angra dos Reis. Herbert, um famoso cantor e compositor paraibano, será nosso instrumento para o auxílio em nossa tentativa de compreensão sobre a nossa produção de movimento. Nos acontecimentos daquele dia, Herbert perdeu sua esposa, entrou em estado de coma, perdeu parte da memória e sua medula espinhal sofreu uma grave lesão (condição denominada de Paraplegia).

No momento em que eu queria ver
      O segundo que antecede o beijo
A palavra que destrói o amor
Quando tudo ainda estava inteiro
No instante em que desmoronou

A Paraplegia é a paralisia das pernas decorrente de lesões na medula espinhal em uma área relativamente baixa. Ao longo do texto não abordaremos as circunstâncias que levaram ao acidente com Herbert e sua esposa. Abordaremos, é verdade, as circunstâncias para a formação do movimento. Como se realiza esse processo do movimento? Como nos movemos?

E cada segundo, cada momento, cada instante
É quase eterno, passa devagar
Precisamos entender que a composição da organização do controle do movimento é hierárquica, embora seja simultânea. O cérebro inicia o processo para que o movimento seja realizado. As regiões motoras do lobo frontal são responsáveis pela avaliação dos planos de ação, organização da seqüencia de movimentos necessários e da produção de movimentos específicos. O tronco encefálico é o responsável pela postura, locomoção e movimentos típicos da espécie (compreendemos agora a importância desta região que foi afetada em Herbert).

Palavras duras em voz de veludo
E tudo muda, adeus velho mundo
Há um segundo tudo estava em paz

Após a medula espinal leva a mensagem para a região escolhida para executar o movimento através dos neurônios motores. São os neurônios sensoriais que encaminham a mensagem para o córtex sensorial informando que o movimento inicial foi realizado. Antes de chegar à informação no córtex, os gânglios basais medem a força de preensão e o cerebelo corrige os prováveis erros no movimento. Além do fator de correção, o cerebelo regula tratos descendentes mediais e laterais, ligados às musculaturas axiais, proximais e distais dos membros.

Se tudo tem que terminar assim
Que pelo menos seja até o fim

Cortina de Fumaça


Open your mind. Essa frase, misteriosamente, me leu em algum outdoor por aí. Sim, eu não a li primeiro que ela. Recorrendo ao poder duvidoso da memória recente, não tenho tanta certeza se essa frase estava em um outdoor por aí. Pensando bem, aposto que li essa frase em algum perfil do Twitter, mas não tenho certeza de sua origem na minha vida. 

Será que li enquanto lutava contra o sono navegando pela www? (www é o mesmo que internet, net, mundo dos computadores) Será que li nas raras vezes em que caminhei por algum centro urbano e me deparei com essa frase estampado a sujeira de uma grande cidade com propagadas? Terá sido em uma música em que essa frase soou pelo meu corpo, foi captada, reproduzida e decifrada, e mudou a minha vida?

Tentei ao longo destes parágrafos, que não são longos, recorrer a minha memória pedindo um auxílio quanto à frase acima mencionada e que inicia esse meu último texto para a disciplina de Bases Anatomofisiológicas da Psicologia (recordo-me com louvor, e veja aí a ironia, do dia em que me sentei na frente do computador e comecei a tentar desenvolver de forma rude o meu primeiro texto semestral, não veja aqui a ironia: não me lembro se escrevi antes ou depois de mandar um vídeo e texto de Diogo Mainardi). Esses dados propositalmente apresentados são conhecidos por um número ímpar de pessoas. Propositalmente escrevo de maneira direta e direcionada não a um público, mas a uma pessoa. Escrevo para alguém que fez a frase do outdoor, da música, da página do Twitter: “open your mind” ser praticável, literalmente.

“Cortina de Fumaça” é transformador, esclarecedor e infinitamente perturbador. Não há como você não o assistir, e com um sopro que varre a dúvida, a cegueira e a ignorância, questionar-se sobre a validade e proficuidade deste discurso moral que apóia as práticas de proibição não só ao uso de drogas, mas a liberdade do sujeito. Esse controle totalitário exercido pelo Estado na vida de cada um de nós e suas práticas e determinações quanto às pessoas que fazem usa das drogas chamadas ilícitas.

Os dedos podres que apontam condenando os que fazem uso de tais substâncias negligenciam seu pessoal uso de substâncias de valor alucinógeno igual. Qual diferença tem entre os que usam as drogas químicas para entregar-se a sensações momentâneas de prazer e os que recorrem à religião para alcançar o mesmo resultado? E os que recorrem ao cigarro, ao café, aos remédios, as preces em línguas e ao álcool para desfrutar, por breves instantes, da liberdade de livrar-se dos grilhões que nos prendem a essa temporariedade mortal? Uma sociedade delirante, tabagista e alcoólatra não possui poder de condenar os usuários que fazem uso de outras drogas alternativas. A humanidade produz, produziu e produzirá drogas para transcender a seu estado primitivo e natural de fantasia e singularidade.

A discussão sobre o uso, controle e cuidado quanto ao uso de drogas ilícitas e seus usuários deve ser guiada pela sensatez encontrada naqueles que possuem uma leitura ampla, fincada não na moralidade embrionária dos púlpitos, altares, sacristias e bancadas, mas na verdade por trás de uma cortina de fumaça e mentiras.

Perfume: a história de um assassino


Jean-Baptiste Grenouille foi um herói. Jean-Baptiste Grenouille foi um assassino. Jean-Baptiste Grenouille foi algo inimaginável. Pensando que comparados a outros mamíferos, nós, seres humanos, possuímos o olfato pouco desenvolvido. Esse pouco desenvolvimento, comprovado, dá mostras de sua imensidão, ou melhor, de sua profunda inalação. 

Tentei provocar a imaginação do leitor com a primeira frase. Tentei provocar a ira do leitor com a primeira frase: como um assassino de mulheres pode ser herói de alguém? Tentei provar por um mais dois que três podem produzir mais loucura que um, que dois. É inegável que ele é um assassino, é inegável que sua história não se resume a isso.

Jean-Baptiste Grenouille era pobre, fedorento, magrelo. Nasceu em uma suja Paris que para livrar-se do próprio cheiro operou, em pequenos frascos, sensações delicadamente prazerosas, provocativas. Jean-Baptiste Grenouille possuía apenas um talento (e contradizendo o título do filme, esse talento destacado por mim não é o de matar, pois matar é instinto do ser humano: uns o aprimoram, outros o adormecem eternamente): cheirava. Lia o mundo com as correntes de ar que adentravam suas fossas nasais e eram captadas pelas células olfativas que, em pleno funcionamento, informavam o sistema nervoso, que as interpretava. As sensações olfativas produzidas pelo corpo eram as páginas na qual seu nariz corria lendo.

Jean-Baptiste Grenouille era refém do seu único talento. Embora fosse divinamente privilegiado com uma extraordinária capacidade de captar os mais diversos e únicos aromas, estava sujeitado humanamente à submissão da glória. Jean-Baptiste Grenouille por alguns instantes salvou uma sociedade; sacrificou donzelas, mulheres e jovens para presentear uma população pútrida ao sabor sublime que o amor incondicional é capaz de proporcionar naqueles que têm o privilégio de senti-lo. Sentimento esse que o próprio Jean-Baptiste Grenouille era incapaz de sentir e de produzir intrinsecamente. 

Perfume não é só a história de um assassino insano e desenfreado. Perfume não é só a história de um talentoso homem presenteado com o dom de perceber o mundo com o nariz. É a história de alguém que luta, com todas as armas que tem, em produzir algo que não nunca teve, recebeu ou sentiu.

Janelas da Alma



Na linguagem moderna (que pode parecer sendo neologista, embora eu desconfie constatando que ela nada tenha, nem minimamente, do vocábulo de Joyce ou de Rosa), se me fosse dada a possibilidade de avaliação (mesmo eu que pouco entendo de películas) clicaria em curtir para o documentário “Janelas Da Alma”.

Também acho que um curtir seja muito pouco para avaliar uma concha interessante de opiniões singulares e maduras, mas na nova linha “facebokiana” um curtir expressa o suficiente para desencadear as mais diversas sensações. E um olhar expressa as mais diversas, singulares e maduras sensações. Um olhar que varia entre o colorido, a captação fora de foco, um alcance mais longo ou um close. Um olhar em preto-e-branco e a revelação de cores que nem o arco-íris, em igual e rica beleza, pode superar. Um olhar que olha pode não enxergar. Um olhar pode ter mais traduções do que todos os idiomas juntos.

Arnaldo Godoy, um dos personagens apresentados no documentário (que tem uma variedade exorbitante de participantes: desde as nóbeis palavras saramaguianas, ao excêntrico apelo de Ubaldo Ribeiro pela manutenção dos seus óculos no rosto durante a transa, pincelando inclusive pela nova perspectiva abordada pelo poeta Manoel de Barros), um dos mais fascinantes. Os contos do cotidiano que Godoy apresenta sobre sua relação com a visão e com a vida dão-nos a reprodução do que podemos imaginar sobre como é a vida de alguém que não possui a visão. A leitura de suas palavras e experiência de vida captada pela lente da câmera é pontual. Fantástica.

Rebobinando o documentário (esse termo que é obsoleto no dicionário tecnológico do século XXI) encontramos a fala sublime de Saramago, ou melhor, as palavras nóbeis por ele proferidas. Saramago tenta exemplificar a condição limitada da visão humana comparando-nos a um falcão (que naturalmente possui uma capacidade visual superior a nossa). Citando o protagonista da peça “Romeu e Julieta” de Shakespeare, ele afirma que se Romeu enxergasse com os olhos de um falcão ele não se apaixonaria por Julieta por não conseguir enxergá-la em seu caráter humano. O que Saramago quis dizer é que se Romeu não visse como um homem vê, ele não veria Julieta como ela é: com defeitos, virtudes, frágil, humana, mulher.

Lembro-me que quando criança sai de casa com minha tia-avó pela manhã e caminhamos por uma rua na minha cidade natal, uma cidadezinha fabril do interior da Paraíba. No passeio, ela encontrou-se com um de seus irmãos. Ele era cego e velho. Agucei minha curiosidade. Na ingenuidade infantil, senti-me superior e medroso: eu poderia enxergar, e ele não; mas e se a falta de visão fosse uma sensação recebida conforme o passar dos anos? Eu que acreditava ser tão superior tornaria-me como ele, perderia meu trunfo. Confesso que esses foram meus temores infantis, perder a capacidade de enxergar. Anos depois, aprendi com o exemplo de uma vizinha cega, que morava próxima a casa de minha tia-avó, verdades que o “Ensaio Sobre A Cegueira” é incapaz de ensinar.

Talvez seja o olhar, o par de olhos tão fortemente ligado a uma aproximação física que o toque não é capaz de expressar.

Avaliando a avaliação


Uma folha na mesa e uma caneta. Regras que misturam honestidade e confiança. Um relógio. Uma nota. Uma sentença. Para muitos alunos, (despreparados, nervosos ou astralmente condenados a um dia ruim), as salas de aula, lacradas para uma prova, podem parecer um momento de tortura. Um teste, que em gênese tenta mensurar as habilidades de um candidato sobre determinadas questões, pode algumas vezes ser uma mini-viagem ao sofrimento. E é.

Não que eu levante a bandeira dizendo que os testes são os únicos responsáveis da ignorância nacional, mas eles são uma forte testemunha de acusação contra o fracasso do modelo educacional atual. Esse discurso que reprova à prova tradicional ganha força, encontra adeptos, mas não passa disso: um discurso reprovador. Caminha entre os lábios dos inconformados e fica ali parado, naquela dança, sem mover-se. 

A maior virtude de quem tem coragem é o ato de praticá-la. Sair do confortável ambiente de quem se guarda ao direito de apenas criticar. Quarta-feira eu fui convidado a um novo modelo de avaliar minhas habilidades. Eu, modestamente, classifiquei a avaliação de quarta como subversiva. E classificá-la em uma única palavra pode parecer prepotência da minha parte, mas classificá-la em qualquer outra palavra e não classificá-la em nenhuma pode ser um crime contra a incapacidade léxica de definir um momento ímpar, como esse, na educação.

O método simples e profícuo, que é derramado em uma folha de papel em branco, desliza, silenciosamente, acompanhando a evolução dos candidatos que passam a trabalhar em grupo, elaboram questões (verificando assim sua capacidade em absolver o assunto, e não somente respondê-lo de maneira robótica. Surgindo assim uma troca recíproca de questões entre os grupos) e também as respondem. Antes que o ponto final silencie minhas palavras, quero afirmar que o novo método avaliativo está longe de ser perfeito. Fico mais feliz por ele não o ser. Afastá-lo da perfeição não é afastá-lo da sua eficiência; não é afastá-lo do seu caráter inovador, corajoso e perturbador; é afastá-lo da covardia presente na retórica que ganha voz e vez pedrificante na garganta dos que carregam Paulo Freire como um guerrilheiro e o mantém preso na estante. Afastá-lo da perfeição é exaltá-lo por exigir do candidato competências da vida real, e não simplesmente habilidades presas à caneta e ao papel.