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quarta-feira, 3 de novembro de 2010

A história de Talaitha

Certo dia de verão, desses bem quentes, em que a temperatura alta parece que vai nos cozer o cérebro e o corpo inteiro como simples animais indefesos, a maioria das pessoas despe-se de roupas em excesso e optam por vestimentas mais leves e refrescantes. O Sol impiedoso como sempre castigava todos os desprotegidos com seus raios. Vamos nos concentrar em um terreno cercado por um muro de tijolos acinzentados, dentro abrigando pouco mais de duas dúzias de grandes barracas de lona todas alinhados em um círculo. No centro, uma mesa velha, descascada e bamba recebe cartas de um baralho desbotado e sujo da mão de seus usuários que faziam o desfrute sem ter mesmo muita higiene, na verdade sem higiene alguma. Eram homens morenos, embora alguns já tivessem em algum momento da vida a pele mais clara: culpa do Sol. Não se importavam com sua aparência, não eram eles que deveriam ser esbeltos, seus rostos eram rústicos, em sua face a barba crescia despreocupadamente, em meio às risadas e provocações do, “Ganhei, ganhei”, seus sorrisos exibiam dentes desmazelados, bastante amarelos. Até o som de suas palavras soava grotescamente. Em uma das mãos que seguravam as cartas, as unhas a mostra se encontravam imundas, os dedos calejados quase em sua maioria. Mesmo com a aparência rude, eram jovens. Jovens velhos.
Na terceira tenda da esquerda, em sua entrada percebia-se jogadas a um canto algumas bonecas de pano feitas à mão. Não eram muitas o tempo, o amor e o dinheiro encarregaram-se disso. Ali, moravam Artemio, Anis e Talaitha. Talaitha herdara da avó paterna os cabelos loiros e longos, os olhos cor de mel que transpareciam alegria. Ela tinha brincado naquela manhã com suas bonecas; no sábado a mãe conseguira após muito esforço remendar o vestido da boneca maior, sua amiga, e ela não perdera tempo em brincar sozinha com elas.
Artemio como bom homem casara cedo, queria filhos homens. Quando soube que seria pai, Artemio gabou-se aos quatro cantos daquele acampamento, em todas as vinte e uma tendas que Wlademir nasceria. Contou com a sabedoria da mais idosa do grupo, Odara, ela tinha seus quarenta e tantos anos. Acreditou em suas palavras, em seu conhecimento empírico e místico.
“E como vai ser Odara?”, perguntou ele, curioso. “É menino?”
Estavam os dois sentados em um sofá coberto com uma grossa e grande cocha com alguns bordados feitos à mão, era meio desconfortável para uma gestante, mas Anis permaneceu ali, vestia um longo vestido vermelho que cobria o barrigão, de enfeite apenas um pingente em sua testa. Desses pingentes vadios, nada de muito valor comercial, mas era um presente. Anis recebera com um entusiasmo grande, parecia receber uma jóia de valor exorbitante: o mísero pingente havia sido fabricado com um material vagabundo, nem era preciso ser um joalheiro para identificar, nem quem fizera deveria receber os pagos do serviço. Anis, por sua vez, a exibia feliz, jactava-se pensando que aquele pingente adornaria mais sua beleza.
“É menino?”, grunhiu Artemio.
“Certamente que sim”, respondeu Odara, que estava de pé, junto com Anis e Artemio que olhava para mão de Odara repousada sobre o ventre da mulher, Odara parecia se comunicar com a barriga de Anis e tornava a olhar para o rosto das duas. Olhava para mão de Odara, para o ventre de Anis, para o rosto das duas; olhava como uma criança curiosa.
E Odara a mais velha do grupo derramou algumas poucas lágrimas de felicidade.
Artemio saíra da tenda de Odara aos berros pelo acampamento afora “É menino! É menino!”
Tendo a solidão como companheira, Anis ouvira o final das palavras de Odara.
“São... duas crias... menino... menina...”.
Wlademir nunca chegaria a nascer: morrera no parto para grande lamúria de seu pai, embora não culpasse Anis. Decerto, gostaria menos de Talaitha. Às vezes se pegava sozinho pensando, pensando... Tinha feito planos para o filho que nunca viveria para realizá-los.
Naquela manhã quente de verão, Talaitha largara as bonecas rapidamente. Naquela manha desconfortável sairia com sua mãe. Pela primeira vez sairia daquele acampamento para ver como era o mundo lá fora, dessa maneira não importava o clima que estava fazendo. A mãe havia ajudado-a a arrumar-se: maquiagem aparente, sorriso no rosto.
“Vamos Talaitha”, chamou Anis.
E foram. A mãe carregava dois baldes grandes para despejarem água e trazerem para as atividades do dia, o acampamento não tinha água encanada, e hoje Talaitha iria com sua mãe, pois a mãe de Anis havia adoecido. Ou foi um meio usado por Anis. Não sabemos ao certo. Percorreram todo o caminho ao som do barulho das buzinas dos carros. O som e a imagem do lado de fora do acampamento soavam diferentes para Talaitha, dentro do acampamento ela ouvia o barulho dos carros bem baixinho e se perdia a imaginar que formatos tinham. Atravessaram juntas a rua, uma pegando a mão da outra, mãe e filha. O caminho que percorreram era cheio de carros, casas, pessoas e sons. Chegaram a uma pequena pracinha com algumas árvores grandes e uns banquinhos de pedra que se espalhavam ao longo da praça, Talaitha olhava tudo com entusiasmo e atenção, era um mundo novo que sorria para ela, um sorriso sem graça, coitada, não sabia disso ainda. Parecia viver num conto de fadas e vivia: talvez, para todos nós seja mesmo a infância esse momento, em que se pode voar e tocar o céu.
Havia algumas pessoas sentadas em um dos bancos de pedra, encaravam-nas com um olhar diferente: desaprovação. Anis abaixou a cabeça, apertou a mão da filha, que retribuiu com um olhar assombrado. O impulso de proteção ou medo vindo da mãe recebia o olhar perplexo da filha.
“O que foi mamãe?”
Anis não respondeu, deixou a resposta passar pelo seu canal auditivo como uma brisa sem som, as palavras da pergunta de Talaitha foram levadas, embora sem resposta. Anis perdera a chance de tentar fazer a filha entender o que passariam todas as vezes que saíssem da comunidade. Agora Talaitha saberia sozinha.
Ao passarem perto o suficiente de um grupo de pessoas mais em frente, sentiram pararem de conversar repentinamente. Em menos de segundos, o silêncio perdera vez para risadas. Talaitha olhou para trás perplexa, sem saber o que estava acontecendo. Olhou inocente para si “O que há de errado?” vestia um vestido muito colorido e farto, estava usando jóias e maquiagem “O que há de errado comigo...?” antes de Anis apressar o passo para afastarem-se, Talaitha sentiu que o motivo das risadas eram elas... zombavam delas... ridicularizavam o modo como se vestiam, como se maquiavam, como vivam... Agora não chorava porque haviam mandado ela parar de brincar, de seus olhos saltaram lágrimas inocentes... sentiu vergonha de quem era, sentiu vontade de não estar ali...
Um castelo de areia não é difícil de ser construído, é mais fácil ainda de ser levado, qualquer marola suficientemente esperta pode atingi-lo e acabar um trabalho bem feito com uma rapidez inesperada, caso você prepare bem seu castelo ele pode durar algum tempo, mas inevitavelmente o mar vai levá-lo e a brincadeira vai acabar.
O mundo sublime dela, talvez só existisse dentro dela. Aqui fora as pessoas eram más, pensou consigo, já longe da pracinha e das pessoas, embora as risadas ecoassem dentro de sua cabeça e ecoariam para sempre. Daquele dia em diante, Talaitha não aprenderia somente a carregar um balde cheio de água, nem a ouvir pessoalmente o barulho dos carros, nem que o trabalho das mulheres era o mais cansativo, nem que abandonaria as bonecas para sempre; aprenderia que existia algo de errado com ela, embora não existisse.