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quinta-feira, 7 de julho de 2011

Das coisas inatas

Desde muito pequeno sempre passei minhas férias e feriados no mesmo lugar, na mesma casa. Não, não é na rua dos bobos. Não, ela não tem o número zero, embora até hoje eu não saiba qual o número que a casa tem. A identificação numérica vale para as companhias de Água e Energia, para mim, bastam às inúmeras recordações que tenho do lugar e das pessoas que por ali circularam. A casa é pequena, bem pequena, menor ainda para uma pessoa de quase dois metros.

É talvez eu tenha crescido demais. É talvez as coisas não tenham se adaptado a mim.

Bom, talvez eu tenha sido forçado a me adaptar aos contratempos de portas menores, chuveiros pequenos, elevadores apertados, poltronas sem espaço. Bom, talvez eu tenha sido forçado a me acostumar com a nova versão das coisas, a readaptação ao mundo.

Pensando bem, eu acho que dormi no ponto nas minhas aulas de biologia, geografia e história (lembrando meus tempos de estudante secundarista – há seis meses – sinto saudade da rotina freqüente de estudos acompanhados ou sinto saudade de ter uma rotina?), pois não me atinei ao fato de que viver é uma constante adaptação a tudo. Pensando bem, acho que dormi no ponto em tantas outras coisas: do ouro que vendi pensando ser grão de areia, dos amores que esqueci pensando ser besteira. Meu pai se adaptou aos acordes de Engenheiros do Hawaii e vive cantarolando o refrão de o Papa é Pop. Minha mãe é pop, e se adaptou ao som da bossa de Caetano. Adaptações.

Desde que cresci mudei meu plano de férias. Passo meu tempo no apartamento da minha tia, em Pernambuco. Dia desses, voltei para lá e revi os desenhos de plantas de imóveis que meu primo costuma fazer. Cálculos para cá e para lá. Exatos. Lógicos. Dia desses, enquanto estava lá, vi uma criança pequena tentar andar sozinha. Um, dois, três passos cuidadosos. Pais cuidadosos. Cada passo era mais firme do que o outro. Cada conquista atual valendo mais que a anterior.

Há um paradoxo se você pensar que com os números você consegue contar quantos planetas existem (e planetas são visivelmente insondáveis), quantas estrelas nascem, quantas pessoas morrem de fome e não saber quantos passos se dá sozinho até aprender a andar e até chegar a felicidade quantos quilômetros vamos caminhar? É irônico saber quantos quilômetros o carro faz consumindo combustível e não saber quantas risadas ou lágrimas o esperam na próxima estação?

Sempre li as placas nas BRs, sempre que andava com meu pai. Meu pai sempre zelou pelo excesso de informação na rodovia. E as placas chovem de números: João Pessoa 56 quilômetros, Mamanguape cinco quilômetros, São Paulo... Sempre passei férias sem meu pai, sempre rezo mais, sem saber rezar, para seguir no banco de trás do carro contando placas com números...

Sigo decorando a distância entre as localidades. Pode ser o que chamam de conhecimento erudito? Pode ser que me perguntem a distância entre aqui e acolá e eu saiba responder, embora eu não saiba, com exatidão, com lógica, com erudição: quantos passos é preciso dar até ver um sorriso sincero e sentir o desejo forte no peito, que faz tudo valer à pena?

Muito embora eu não tenha decorado quantos passos dei desde que aprendi a andar, posso apostar, sem nunca ter lucrado com loterias, que os passos para o encontro da felicidade podem estar a 56 quilômetros, 149 quilômetros, 3 000 quilômetros de distância ou juntos e imóveis no banco de trás de um carro contando placas, numa caminhada determinada em busca do destino desconhecido, na descida em uma parada errada ou também na oportunidade de abrir o coração para as curvas retas do acaso, no beijo demorado, no grito da companhia silenciosa, na solidão física que acolhe a convivência da recordação mental, nas palavras que um abraço traz, no conforto que um olhar tem.

Números em placas servem apenas para marcar e informar distâncias? Números em placas quebram distâncias e aproximam estranhos conhecidos.

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