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sexta-feira, 11 de março de 2011

Os Dias Em Que Você Não Esteve Aqui

Dezoito de Setembro, Dezenove, Vinte, Vinte e Um, Vinte e Dois, Vinte e Três, Vinte e Quatro, Vinte e Cinco, Vinte e Seis, Vinte e Sete, Vinte e Oito, Vinte e Nove, Trinta, Um, Dois, Três, Quatro, Cinco, Seis, Sete, Oito, Nove, Dez, Onze, Doze, Treze, Quatorze, Quinze de Outubro.

Um do mês Um, do ano de Mil Novecentos e Sessenta e Dois.


O quarto estava arrumado, as cobertas encontravam-se sobre a cama, o guarda-roupa permanecia trancado e não havia sapatos, roupas ou toalha fora do lugar. Estava vazio. Você não existia mais ali. A casa conservava a reverência do seu quarto. Sozinho, eu quebrava o silêncio com preces, meu canto lúgubre e suplicante. Apegava-me a minhas crenças com tamanha veemência que chegava a sentir parte do meu eu desprender-se caminhando como oferenda aos Céus. Rezava para conviver com seus defeitos por mais algum tempo, para você não viver apenas na tenuidade de minha memória; rezava para nossos momentos se esticarem mais.

Foi um baque você não se despedir. Sair sozinho. Separamo-nos em silêncio. À distância insondou nossos corpos, não os nossos sentimentos, que foram sepultados dentro de nós. Porém era inocência querer antecipar a dor.

Paramos.

Paramos em uma espécie de purgatório esdrúxulo, onde, cada um a sua maneira, pudemos, detalhadamente, avaliar os processos ao qual nos dirigimos até ali. Tudo era inamovível: casa, quarto, vida. O tempo escorria um pouco de nós ao passearmos sozinhos e distantes por ele. Sofri por não ter dito tudo aquilo que o coração está cheio, os ouvidos precisam, mas a boca reluta e ignora. As horas foram dias. Movíamos, lenta e ociosamente, nossas vidas, agora equivalentes em lamúria. O abismo imensurável tomou, tornou vida entre nós. A tristeza, em alguns momentos, fugia ao ser superada por uma dor maior. Embora, não valêssemos muito, passávamos para uma disputa nem circulante entre cambistas ou contrabandistas pífios. Esse nós, não sou eu e você. Somos eu e eles. Você, diferente de todos, era acirradamente disputado pelos ourives. E esse valor eu só calculara e percebera longe de você. O brilho se dissipou levando-o.

Como encontrar paz assim?

Como ver a sua bravura diluir-se na fragilidade da agonia desvairada?

Preferi chorar baixinho e sozinho: acovardar-me. Preferi fechar os olhos – mas você não me abandonava, nestes momentos eu ainda via seu sorriso invisível e suas feições rudes me ordenando coragem – tentar subtrair essa sensação horrenda de incapacidade e perda. A lança cravada no meu peito sangrava calmamente, pingo a pingo. Quando eu, finalmente, pude descansar meu corpo, minha mente tornava a recapturar aqueles corredores tão limpos e impregnados com aquele odor de desespero, com aqueles jalecos alvos que me jogavam violentamente para o canto de tamanho tormento.  Naquelas situações, revivi meus pesadelos: embeveci-me de temor e horror. A crueldade de meus atos, pensados e impensados, suspiravam. A sua cura dependia, ilogicamente, das nossas virtudes apagadas. Os dias em que você não esteve aqui corriam eternos, demasiadamente tortuosos e descrentes.

Mas os faróis da esperança iluminaram uma primavera aromaticamente fértil, com um aquecimento de espírito.  Sua enorme sombra e o som de seus pesados passos foram vistos e ouvidos de novo; a nova chance e uma ínfima fresta de alegria irradiaram casa adentro. No desabrochar das flores, alcançávamos a mais preciosa oportunidade. Não há resposta presente de um final feliz.

Nunca encontrarei palavras para descrever isso com exatidão. Duvido que um dia eu tenha essa capacidade ou venha a ser agraciado com esse dom. Porque o coração guarda coisas que vivem presas por um tempo incontável, embora sejam esquecidas e pareçam mortas, elas movem-se ao leve toque da recordação e zumbem batendo nossa porta.  

Dia nove

Um comentário:

  1. 'Aquilo que o coração amou fica eterno', já dizia Adélia Prado.

    Amei esse lugar. Amei o texto.

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