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quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Janelas da Alma



Na linguagem moderna (que pode parecer sendo neologista, embora eu desconfie constatando que ela nada tenha, nem minimamente, do vocábulo de Joyce ou de Rosa), se me fosse dada a possibilidade de avaliação (mesmo eu que pouco entendo de películas) clicaria em curtir para o documentário “Janelas Da Alma”.

Também acho que um curtir seja muito pouco para avaliar uma concha interessante de opiniões singulares e maduras, mas na nova linha “facebokiana” um curtir expressa o suficiente para desencadear as mais diversas sensações. E um olhar expressa as mais diversas, singulares e maduras sensações. Um olhar que varia entre o colorido, a captação fora de foco, um alcance mais longo ou um close. Um olhar em preto-e-branco e a revelação de cores que nem o arco-íris, em igual e rica beleza, pode superar. Um olhar que olha pode não enxergar. Um olhar pode ter mais traduções do que todos os idiomas juntos.

Arnaldo Godoy, um dos personagens apresentados no documentário (que tem uma variedade exorbitante de participantes: desde as nóbeis palavras saramaguianas, ao excêntrico apelo de Ubaldo Ribeiro pela manutenção dos seus óculos no rosto durante a transa, pincelando inclusive pela nova perspectiva abordada pelo poeta Manoel de Barros), um dos mais fascinantes. Os contos do cotidiano que Godoy apresenta sobre sua relação com a visão e com a vida dão-nos a reprodução do que podemos imaginar sobre como é a vida de alguém que não possui a visão. A leitura de suas palavras e experiência de vida captada pela lente da câmera é pontual. Fantástica.

Rebobinando o documentário (esse termo que é obsoleto no dicionário tecnológico do século XXI) encontramos a fala sublime de Saramago, ou melhor, as palavras nóbeis por ele proferidas. Saramago tenta exemplificar a condição limitada da visão humana comparando-nos a um falcão (que naturalmente possui uma capacidade visual superior a nossa). Citando o protagonista da peça “Romeu e Julieta” de Shakespeare, ele afirma que se Romeu enxergasse com os olhos de um falcão ele não se apaixonaria por Julieta por não conseguir enxergá-la em seu caráter humano. O que Saramago quis dizer é que se Romeu não visse como um homem vê, ele não veria Julieta como ela é: com defeitos, virtudes, frágil, humana, mulher.

Lembro-me que quando criança sai de casa com minha tia-avó pela manhã e caminhamos por uma rua na minha cidade natal, uma cidadezinha fabril do interior da Paraíba. No passeio, ela encontrou-se com um de seus irmãos. Ele era cego e velho. Agucei minha curiosidade. Na ingenuidade infantil, senti-me superior e medroso: eu poderia enxergar, e ele não; mas e se a falta de visão fosse uma sensação recebida conforme o passar dos anos? Eu que acreditava ser tão superior tornaria-me como ele, perderia meu trunfo. Confesso que esses foram meus temores infantis, perder a capacidade de enxergar. Anos depois, aprendi com o exemplo de uma vizinha cega, que morava próxima a casa de minha tia-avó, verdades que o “Ensaio Sobre A Cegueira” é incapaz de ensinar.

Talvez seja o olhar, o par de olhos tão fortemente ligado a uma aproximação física que o toque não é capaz de expressar.

Avaliando a avaliação


Uma folha na mesa e uma caneta. Regras que misturam honestidade e confiança. Um relógio. Uma nota. Uma sentença. Para muitos alunos, (despreparados, nervosos ou astralmente condenados a um dia ruim), as salas de aula, lacradas para uma prova, podem parecer um momento de tortura. Um teste, que em gênese tenta mensurar as habilidades de um candidato sobre determinadas questões, pode algumas vezes ser uma mini-viagem ao sofrimento. E é.

Não que eu levante a bandeira dizendo que os testes são os únicos responsáveis da ignorância nacional, mas eles são uma forte testemunha de acusação contra o fracasso do modelo educacional atual. Esse discurso que reprova à prova tradicional ganha força, encontra adeptos, mas não passa disso: um discurso reprovador. Caminha entre os lábios dos inconformados e fica ali parado, naquela dança, sem mover-se. 

A maior virtude de quem tem coragem é o ato de praticá-la. Sair do confortável ambiente de quem se guarda ao direito de apenas criticar. Quarta-feira eu fui convidado a um novo modelo de avaliar minhas habilidades. Eu, modestamente, classifiquei a avaliação de quarta como subversiva. E classificá-la em uma única palavra pode parecer prepotência da minha parte, mas classificá-la em qualquer outra palavra e não classificá-la em nenhuma pode ser um crime contra a incapacidade léxica de definir um momento ímpar, como esse, na educação.

O método simples e profícuo, que é derramado em uma folha de papel em branco, desliza, silenciosamente, acompanhando a evolução dos candidatos que passam a trabalhar em grupo, elaboram questões (verificando assim sua capacidade em absolver o assunto, e não somente respondê-lo de maneira robótica. Surgindo assim uma troca recíproca de questões entre os grupos) e também as respondem. Antes que o ponto final silencie minhas palavras, quero afirmar que o novo método avaliativo está longe de ser perfeito. Fico mais feliz por ele não o ser. Afastá-lo da perfeição não é afastá-lo da sua eficiência; não é afastá-lo do seu caráter inovador, corajoso e perturbador; é afastá-lo da covardia presente na retórica que ganha voz e vez pedrificante na garganta dos que carregam Paulo Freire como um guerrilheiro e o mantém preso na estante. Afastá-lo da perfeição é exaltá-lo por exigir do candidato competências da vida real, e não simplesmente habilidades presas à caneta e ao papel.

Escritores da liberdade


São algumas as definições para um corpo. Físicamente, eu poderia usar o epíteto o corpo é "um  conjunto de átomos, dispostos em diferentes formas". Biologicamente, eu usaria a setença de que um corpo "é uma estrutura total e material do organismo humano". Atreveria-me a escrever, teologicamente, que um corpo é um receptáculo para a alma. Curiosamente, eu sentiria a sensação de estar coerentemente correto e não enxergaria razões para me contradizer. Talvez o risco tenha sido separar apenas por um ponto duas raízes distintas? A fé científica, a fé no divino (coloquei-as o mais próximas possível até onde a sintaxe é capaz de me permitir). Talvez. Talvez o risco seja começar meu primeiro texto, como aluno de um curso superior de uma Universidade, de forma contrária as páginas científicas? Se esse for o caso, tenho o green card da minha professora de Bases Anatomofisiológicas (que mesmo lecionando uma disciplina como essa, usa em sua apresentação trechos da consagrada obra de Guimarães Rosa, "Grande Sertão: Veredas". Belo começo).

O primeiro parágrafo tenta aproximar pólos distintos, gregos e troianos, ciência e religião. Tentar tornar homogêneo o que construiu-se, em nós, como heterogêneo. Ele respira um pouco pela persistência e exemplo da professora Erin Gruwell. Branca, inteligente, rica. Protagonista do filme "Escritores da Liberdade" ("Freedom Writers") junto com sua insurgida classe 203. Um conjunto perfeito para o paradoxo que seria dar aulas em um gueto americano, para alunos excluídos que duelavam entre si e eram perseguidos socialmente, além de desinformados e desinteressados, em que a vida poderia resumir-se à chegar aos dezoito anos ou não. Com um talento que beira a loucura ou a epopéia, professora G. (carinhosamente chamada pelos seus alunos) consegue transmutá-los através da única forma que um homem pode transcender em sua vida e dissipar seu estado constante de ignorância: tendo direito a educação. Teoricamente prático, fonéticamente repetido no horário eleitoral pelos políticos, a educação não é tão simples e fácil como se imagina ou se ouve. A escola de Long Beach poderia ser qualquer escola do subúrbio campinense e os problemas não seriam muito diferentes. A realidade tratada pela película, mensurando as devidas proporções, seriam quase idênticas.

A sala 203 é o encontro de todo o problema de Long Beach: brancos, negros, orientais, latinos. É como convidar, diariamente, para o chá das cinco Deus e o diabo. Enfrentando um burocrático e retrógrado sistema de educação (que lembram as obras de Kafka), a professora G aposta na evolução moral, educacional e ética de seus alunos. Consegue visualizar e acender uma fogueira, com um simples isqueiro, no espírtito de cada um. Aproxima o objeto do observador, faz saltar as palavras clássicas das páginas de celulose para os olhos. Dá a todos os alunos o direito a escolher como escrever seu vida dali para frente, garantindo, indistintivamente, a educação como escudo. Faz com que cada um de nós pense seu lugar nesses problemas socio-educacionais e quanto que estamos contribuindo para a solução desses males.

sábado, 24 de setembro de 2011

Encíclica machadiana


A Terra gira em torno do Sol. A voz de Ptolemeu não pode mais discutir ou mudar esse postulado universal e Heliocêntrico, ela já não é mais ouvida: a voz caduca, arbitrária e dogmática se calou. A literatura brasileira gira em torno de Machado de Assis. Uma simples e perfeita analogia. Indubitável. Somos todos filhos órfãos do mais brilhante escritor nacional, aquele que está patamares insuperávies acima de todos os outros nomes irrisórios de nossas letras. Machado de Assis. Machado de Assis. Machado de Assis. Como em uma trindade.

Por que a histeria, a incredulidade e a indignação com essa afirmação? Por quê?

Diante da balbúrdia transbordante, uso as palavras desaforadas de Nietzsche para o peso encíclico desse texto: "É preciso defender os fortes contra os fracos." Machado não precisa da minha retórica falha, da minha mais brilhante defesa, das mais brilhantes e irretocáveis defesas que provavelmente venham a surgir no quase continental país dos bachareis (mas ainda a faço usando a famosa frase de Nietzsche): sua obra transcendental supera qualquer crítica medíocre, qualquer vão esquecimento, todas as páginas que o sucedem, em anos e anos de letras escritas aqui.

No mesmo altar em que Shakespeare, Homero, Cervantes e Camões estão, Machado está: as mesmas vozes intelectuais que os beatificam, canonizam Machado. Há velas para celebrar todos esses gênios. Machado é a nossa estrela de quinta grandeza. É incomparável, embora os modernistas, para firmar seu movimento, negaram a obra machadiana ou a esconderam na tentativa de livrar o Brasil de um atraso secular, seus escritos reverberam. São vozes que não se calam.

Pode, em nossa Via-Láctea, Plutão superar o Sol? Marte? Júpiter? Saturno? Se comparados ao Sol, não estão todos em uma demasiada capacidade inferior? Mesmo que atirem chamas na história das letras no Brasil e a desaparecam para todo o sempre, Machado de Assis estará lá, impávido, heroico: ele é nossa Estrela Polar. Qualquer voz rouca que teime contra esta setença está fadada ao fracasso por um único e simples motivo: sempre iremos girar em torno do talento insondável de Machado de Assis.